Após quase 1h de viagem da orla de Iracema ao subúrbio de Fortaleza, a
equipe de reportagem do Esporte Espetacular dobrou a estreita Rua 842 do
Conjunto Ceará, quando deparou-se com uma menina vestida com o uniforme
completo da seleção brasileira de futsal. A cearense de aparência
frágil era Amanda Lyssa de Oliveira Crisóstomo, mais conhecida como
Amandinha. Cercada por amigos e familiares, dentre eles o pai, Agnaldo, e
a mãe, Rosimeire, a ala-esquerda estava pronta para narrar toda a sua
trajetória até o topo. Com apenas 24 anos, Amandinha foi eleita a melhor
jogadora do mundo pelo quinto ano consecutivo. A caminhada começou ali
mesmo no Conjunto Ceará.
Meus primeiros passos foram nessa quadra no fim da minha rua. Fui chamada para jogar no projeto do professor André, que foi o meu primeiro técnico. Era uma escolinha de futsal para meninos. Quando fui para a minha primeira competição, os outros times não quiseram me aceitar. Não queriam enfrentar um time que tinha uma menina. O André lutou por mim e fez com que eu jogasse. Hoje estou aqui contando essa história para vocês - disse a craque do futsal feminino.
A passagem pelo projeto social do Conjunto Ceará foi meteórica.
Destaque nos torneios amadores, Amandinha logo foi chamada para jogar um
Intercolegial, e, de quebra, ganhou uma bolsa de estudos em uma escola
particular de Fortaleza.
André, por sua vez, foi vítima de uma fatalidade. Há três anos, o
mentor do projeto social de futsal do Conjunto Ceará sofreu um acidente
de carro e foi parar numa cadeira de rodas. Vizinho da família da
jogadora, o treinador hoje conta com a ajuda de amigos e familiares para
ter um mínimo de qualidade de vida.
O André foi aquele que apostou em mim quando eu era criança. Com
certeza, o que ele fez ficou marcado na minha vida. Ele era o único que
dava treinos nessa quadra, e fazia isso tudo de coração. Tenho muito
orgulho de ter iniciado com ele. Depois do acidente dele não temos mais
projeto social aqui. Uma pena, porque temos muitas crianças na rua sem
fazer nada - contou Amanda Lyssa, arrancando lágrimas do rosto do
ex-treinador.
Amandinha ama futsal desde que se entende por gente. Quando ainda usava
chupeta, a cearense acompanhava o pai e o tio nas peladas locais. Nos
intervalos, invadia as quadras e campos para brincar de bola.
Inicialmente, Agnaldo teve receio no que a relação entre a filha e a
bola poderia desencadear. Hoje, o patriarca da família Crisóstomo se
arrepende de ter duvidado do potencial da primogênita.
- Todo mundo na nossa pelada ficava admirado de ver como ela dominava
bem a bola com apenas 3 ou 4 anos de idade. Ela sempre pedia para jogar e
eu não deixava. Era muito pequena e eu achava que não daria certo. Até
que o treinador aqui da quadra (André) convidou a Amanda para participar
da escolinha dele. Eu concordei e logo no primeiro jogo ela arrebentou.
De lá ela foi para o Intercolegial e foi aí que um clube de Santa
Catarina procurou a gente - lembrou Agnaldo.
A equipe interessada em contar com o talento de Amandinha foi o
Barateiro Futsal, de Brusque-SC. Disposta a ir atrás do seu sonho, a
cearense deixou a casa dos pais ainda na adolescência. De longe, Amanda
viu nascer o caçula da família, o extrovertido Arthur, hoje com sete
anos. Pelo Barateiro, a ala chegou à seleção brasileira.
- Quando saí de Fortaleza eu tinha apenas um sonho, que era jogar
bola. Para isso, apostei na minha ida a Santa Catarina e a partir daí as
coisas foram surgindo. Com 19 anos eu conquistei o meu primeiro título
no adulto. Vieram também várias premiações individuais e a seleção
brasileira. Hoje me sinto representante de milhões de jogadoras que
lutam por melhorias no nosso esporte - comentou a melhor do mundo.
Multicampeã em Santa Catarina, Amandinha chegou à seleção brasileira
adulta em 2013. Naquela época, os Mundiais ainda eram realizados
anualmente. Em dezembro daquele ano, a equipe comandada pelo então
técnico Manoel Tobias bateu a Espanha na final, conquistando o
tetracampeonato na casa do rival.
Os títulos mundiais de Amandinha pela seleção se repetiriam pelos dois
anos seguintes - a última Copa do Mundo aconteceu em 2015, antes de a
Fifa chancelar o futsal feminino. Em 2014, inclusive, a cearense marcou o
gol da conquista nos segundos finais da decisão contra Portugal. Na
comemoração, a ala tirou a camisa ficando só de top em quadra.Logo após
aquela Copa do Mundo, Amanda ganhou o seu primeiro prêmio de melhor
jogadora do planeta.
- Aquela final contra Portugal foi inesquecível. A gente fez 1 a 0 no
primeiro tempo, mas levamos três gols no segundo. Mesmo assim não
desistimos da partida e fomos buscar o empate em 3 a 3. No finzinho do
jogo, fiz aquele gol e foi uma explosão de alegria. Precisava extravasar
por tudo o que nós passamos naquele Mundial - frisou a jogadora.
De fato, 2014 marcou uma grande vitória do futsal feminino sobre a
falta de investimento na modalidade. Semanas antes da competição, a
Confederação Brasileira de Futsal (CBFS) retirou o Brasil do torneio,
alegando não ter recursos para pagar as despesas da viagem à Guatemala.
As atletas então foram pedir ajuda nas redes sociais, até um banco
privado oferecer patrocínio pontual à equipe.
Apesar da vitória e da militância das jogadoras pela causa, o futsal
feminino segue com um investimento bem mais modesto que o masculino. Não
há sequer uma Liga Nacional de clubes no Brasil. Mesmo com os cinco
prêmios de melhor jogadora do mundo do site Futsal Planet - a eleição
acontece através de um colégio eleitoral formado por jornalistas e
treinadores - Amandinha não consegue ganhar mais de R$ 5 mil por mês.
Em 2017, inclusive, o Barateiro encerrou as atividades no futsal
feminino adulto, o que fez com que a jogadora mudasse de clube. A equipe
escolhida foi o Leoas da Serra, de Lages-SC, onde está até
hoje. Paralalamente à carreira de jogadora, Amanda ainda encontrou tempo
para cursar fisioterapia em uma faculdade particular. Muito dedicada
nos estudos, ela se formou no fim do ano passado.
- Quero abrir um outro campo profissional, porque não sei como será o
meu futuro. O que posso dizer é que estou muito feliz em Lages. O clube é
maravilhoso, e os nossos jogos atraem muita gente. Lá nos somos
celebridades - disse.
As grandes atuações pelo Leoas da Serra despertaram a cobiça de outros
clubes. Propostas de fora do país surgiram nos últimos anos. Só que
Amandinha tem um compromisso muito maior com a modalidade.
- As pessoas me perguntam muito por que eu ainda não fui jogar na
Europa. Acredito que o meu mundo está no Brasil. Eu saindo daqui eu
resolvo a minha questão financeira, mas assim eu estaria abandonando a
minha modalidade. Tenho um sentimento de gratidão com tudo que passei
com a seleção brasileira e com os clubes. Quero mudar o futsal feminino
de patamar - declarou.
Fã de Neymar, Falcão e Marta, Amanda leva uma vida simples, mesmo com
toda a fama surgida nos últimos anos e os seus vídeos amplamente
divulgados nas redes sociais. Um dos sonhos da melhor jogadora de futsal
do mundo é encontrar a Rainha do Futebol pessoalmente.
- Quem sabe não realizamos um evento juntas. Temos muita coisa a
trocar. Ela está sempre brigando pelo futebol e eu sempre brigando pelo
futsal. Seria bom unirmos essas forças - destacou a jogadora, que espera
ter um 2019 tão vitorioso quanto os anos anteriores.
- No momento estou de férias, descansando, aproveitando para dormir até
tarde e comer a comida da minha mãe. No fim de janeiro, voltaremos às
atividades e buscaremos o título em todos os torneios da temporada.
Minha meta é jogar bem, fazer gols e ajudar o futsal feminino a crescer
ainda mais. Quero fazer história e transformar o nosso esporte -
finalizou.
Fonte: Bárbara Coelho, Flávio Dilascio e Roberto Veloso – globoesporte.com
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